Tempo Perdido

Pensamentos errantes sobre política, ciência, arte e a vida em geral

A Mentira da Utopia Inalcançável

Ser um jovem adulto em meados da década de 2020 é ver com seus próprios olhos a história sendo feita, desfeita, relembrada e esquecida, tudo ao mesmo tempo. 

Dizer que a época em que vivemos é fruto das épocas que vieram antes é um truísmo, uma alegação tão óbvia que não significa nada. Palavras sem conteúdo. O que realmente importa é entender como chegamos até aqui, como o que veio antes vive através de nós mesmo sem que nós percebamos. Somos a mais nova geração de soldados em uma batalha eterna, ainda seguindo, subvertendo, ou refutando por completo as ordens de generais que há muito já morreram. 

Vivemos tempos em que a falência de nossa sociedade está evidente e escancarada. Isso, pelo menos, é unânime: ninguém acha que está tudo bem, ninguém está contente com a forma como as coisas andam, independente de seu alinhamento político. Na verdade, até quem não tem nenhum alinhamento político concorda. 

O otimismo dos anos 80, quando estava acabando a Guerra Fria, nos parece completamente alienígena. Até nossas festas são um ato de rebeldia. Nós sabemos que o mundo está indo pro buraco, e alguns dizem até que deveríamos nos desesperar por isso, mas pra quê? Estamos vivos agora, conhecemos pessoas agora, e para gerações inteiras sem nenhuma perspectiva de futuro, isso é o bastante para espremer alguma alegria deste mundo doente. 

E, olhando a história em retrospecto, é óbvio como a euforia se tornou desespero. Os anos 80 e 90 foram a era de ouro do neoliberalismo, e não é por acaso que a contracultura continuou firme e forte nessa era, embora não fosse tão mainstream quanto nos anos 60 e 70. A dinâmica concorrencial e individualista do capitalismo se intensificou, e com ela, se intensificaram também as desigualdades sociais e as crises econômicas periódicas. 

Ao mesmo tempo, a dissolução (ilegal) da União Soviética em 1991 deixou movimentos de esquerda no mundo todo desnorteados. Alguns se entregaram à política eleitoreira e se tornaram típicos exemplos da política corrupta e oportunista, como o PT e o PC do B no Brasil. Outros permaneceram íntegros ideologicamente, mas sem perspectivas de ação concreta e presos a teorias ultrapassadas, muitas vezes inadequadas às condições reais dos tempos e dos lugares onde atuavam, a exemplo da meia dúzia de micropartidos de esquerda revolucionária do Brasil: PCB, PCR, PSTU, PCO (que atualmente é “comunista” só em nome e se assemelha ao fascismo em suas posições). 

Ou seja, o campo liberal reina sem oposição séria desde o fim da Guerra Fria, e a desorganização da esquerda alimentou o mito de que o modelo liberal-burguês de democracia representativa seria a “única” forma plausível de organizar uma sociedade. Chegou-se até mesmo a cogitar o “fim da história” (!), como se, depois de 1991, nenhuma mudança relevante jamais fosse ocorrer novamente no mundo. 

Mas esse modelo não é perfeito, muito pelo contrário. Os anos 2000 evidenciaram cada vez mais o seu desgaste, com as guerras no Iraque e no Afeganistão e a catastrófica crise econômica de 2008, criada pela dependência do mercado imobiliário no capital fictício. Países inteiros foram relegados à sarjeta e obrigados a implementar medidas de austeridade fiscal, cuja ineficácia é cientificamente comprovada, que só serviram para salvar os grandes bancos e transnacionais às custas da população.

No Brasil, o esgotamento da política conciliatória promovida pelo PT veio em parcelas. Nos dois primeiros governos Lula, vimos um Estado que favoreceu o agronegócio e as instituições financeiras, ao mesmo tempo que dava migalhas à população. Houveram conquistas, mas também graves retrocessos, como a criação do FIES e do Prouni, que iniciaram um processo de desmantelamento das universidades públicas em favor de instituições privadas, ou a abertura de linhas de crédito predatórias, que levaram ao superendividamento de milhões de trabalhadores. 

Os latifundiários e bancários lucravam cada vez mais, mas simplesmente não havia retorno proporcional para a população. Ao mesmo tempo que os serviços públicos definhavam, cada vez mais caros e precários, o Estado investia bilhões de reais nos projetos relacionados à Copa de 2014 e às Olimpíadas de 2016. 

Foi nesse ambiente que estouraram os protestos de 2013, que surgiram como manifestações contrárias ao aumento nas tarifas de ônibus e logo se tornaram um movimento de massa de insatisfação contra o governo Dilma. Dentre as inúmeras reivindicações dos manifestantes – medidas contra a violência policial, melhoria na qualidade dos serviços públicos, o fim da hegemonia do Centrão – os partidos de direita e centro escolheram uma em particular para tornar-se sua grande bandeira: o combate à corrupção. Um ato de ironia shakespeariana, considerando que PL, PP, MDB e afins foram justamente os partidos mais beneficiados pelo esquema do Mensalão. 

Reunidos ao redor desta pauta, iniciou-se a associação do Estado, enquanto instituição, a tudo o que há de ruim: o Estado é corrupto, o Estado gasta muito, o Estado é burocrático, o Estado não serve pra nada. A insatisfação do povo foi apropriada e deturpada em propaganda a favor dos interesses da burguesia, que é quem se beneficia de qualquer política de desregulação, terceirização ou privatização. Com o apoio do oligopólio da mídia, a Operação Lava-Jato realizou o assassinato político de diversos agentes e personalidades e entregou de bandeja as eleições de 2018 à chapa ultradireitista de Bolsonaro e Mourão, concorrendo pelo PSL, um partido nanico da direita nacionalista. Pior ainda, a hegemonia do Centrão no Congresso se fortaleceu mais ainda, ao invés de recuar. 

E todos nos lembramos dos últimos capítulos dessa história: a atuação catastrófica do governo federal durante a pandemia, as políticas “sociais” criadas aos 45 do segundo tempo para conseguir votos, a desinformação, o negacionismo, a tentativa de golpe, e o governo de “frente ampla” de Lula que vai do nada ao lugar nenhum. 

Traço este percurso histórico para mostrar que o crescimento da direita foi um fruto do próprio oportunismo, mas também do imobilismo da esquerda brasileira. O movimento estudantil e os sindicatos foram hegemonizados pelos partidos da situação à época, o PT e o PC do B. Sem a necessária crítica à corrupção e ao elitismo que infestaram os Três Poderes, a direita pôde fingir ser a “voz do povo” através da pauta vazia do combate à corrupção. Pauta vazia, não por não ser importante, mas porque os partidos de direita e centro são tão corruptos quanto o PT, se não mais. Não nos esqueçamos que o orçamento secreto e as emendas PIX, formas de gastar o dinheiro público sem prestar contas depois, foram inventadas por eles! 

E tudo isso importa, porque esta é a raiz do pessimismo que nos assola atualmente. Se muitos acreditam que nada vai melhorar, é porque querem que acreditem que a política eleitoral é a única política que existe. Enquanto dependermos dos partidos da ordem, sejam eles de esquerda ou de direita, realmente não haverá nenhuma mudança significativa. Nosso futuro continuará fora de nossas mãos, roubado pela eterna alta do custo de vida por um lado e pelo desastre climático no outro. 

A negligência de uns e a malícia de outros nos fizeram esquecer que a política eleitoral é só a ponta do iceberg. Política não se faz só na urna, política se faz nas associações de bairro, nos sindicatos, nos grêmios estudantis e centros acadêmicos e em toda outra instituição onde as pessoas se reúnam para defender seus interesses. Muitas delas estão sucateadas e esquecidas pelo próprio desinteresse dos associados, mas se não lutarmos por nós mesmos, quem irá lutar? 

Um futuro melhor, mais livre e mais justo, não é uma utopia inalcançável. Pelo contrário, sabemos exatamente como chegar lá. Mas para isso, é preciso falar e é preciso agir. É preciso que nós mesmos realizemos a defesa intransigente de nossos próprios interesses sempre que eles estiverem ameaçados, que sempre façamos denúncias públicas contra a corrupção e o autoritarismo, e que não tenhamos medo e nem vergonha de fazer nossas vozes serem ouvidas. 

Uma revolução não se faz apenas nos momentos que entram para os livros de história, ela começa com cada cidadão que passa a exigir ser tratado como tal, tão digno de seus direitos como qualquer outro. 

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